sábado, 5 de julho de 2014

Jan van Eyck, autor do retrato de Isabel de Portugal, foi o promotor da pintura a óleo

Detalhe de Jan van Eyck, Portrait of a Man (Self Portrait?); óleo sobre madeira de carvalho (26x19cm), 1433. - The National Gallery

No final do século XIV, surgiu uma nova pintura com textura, transparência e efeitos surpreendentes na cor, que deslumbrou a Europa da época.
 
A pintura a óleo, feita sobre madeira (já conhecida anteriormente embora mais rudimentar), apareceu na Flandres, tendo como promotor Jan van Eyck (1390-1441) que, em conjunto com o seu irmão Hubert, a aperfeiçoou e difundiu. 

O artista pintor, encetava a sua obra sobre um suporte de tábuas de carvalho, com os veios impermeabilizados por uma camada de gesso e cola animal, onde traçava o desenho, impermeabilizando-o com óleo de linhaça. Para a pintura, o óleo de linhaça era misturado com pigmentos reduzidos a pó, formando uma pasta de secagem lenta – foi necessário ter experiência e conhecimento dos pigmentos para não criar reações de incompatibilidade entre eles. 

A técnica da pintura a óleo era bastante complexa, pois exigia a sobreposição de diversas camadas de cor com maior ou menor transparência, de acordo com o resultado pretendido, o que dependia da quantidade de óleo usado na mistura.
Os artistas melhoravam constantemente as técnicas que iam descobrindo, guardando-as no maior segredo.

Como menciona António João Cruz, referindo-se à utilização do pigmento terra verde:  
(...)
Cennini descreve essa utilização da seguinte forma: «pega num pouco de terra verde e num pouco de branco de chumbo, bem misturados; aplica duas camadas por baixo da face, por baixo das mãos, por baixo dos pés e por baixo das zonas de carnação»; ao aplicar as camadas de cor rosada, «tem em mente que na pintura sobre madeira têm que ser aplicadas mais camadas do que na pintura mural; mas não muitas mais, de forma a que não deixe de ser visível um pouco do verde que já está sob as zonas de carnação. (...)
        ( http://ciarte.no.sapo.pt/textos/html/200701.html ).   
 
Utensílios e fabrico de tintas na pintura a óleo. Correia, João, A arte uma história visível. Lisboa: Edições Rumo.

Os antigos tratados de pintura referem um conjunto de pigmentos naturais usados juntamente com pigmentos artificiais. Dos pigmentos naturais importantes na história da pintura, podem destacar-se o azul ultramarino, o cinábrio, a terra verde (usado na Idade Média na pintura a têmpera) e os ocres. O azul ultramarino (obtido da pedra semi-preciosa lápis-lazúli) e o cinábrio (sulfureto de mercúrio, de cor vermelha) foram vistos como materiais de luxo e de prestígio, durante a Idade Média e época romana.

Como menciona António João Cruz, referindo-se à preparação do pigmento cinábrio:
(...)
O processo de preparação era simples. Segundo Vitrúvio, «quando o minério está seco, é moído com pilões de ferro e, através de sucessivas lavagens e aquecimentos, são removidas as impurezas e é obtida a cor». (...)
       ( http://ciarte.no.sapo.pt/textos/html/200701.html ).   

A origem dos pigmentos e o saber associado à sua preparação é referida por Isabel Stilwell:
(…)
- De onde é que vêm os seus pigmentos? – perguntava Henrique.
- Conhece a Urzela, de que se consegue uma cor púrpura? Já começámos a exportar para a Flandres.
Van Eyck entusiasmou-se:
- Roccella Tinctoria? Mas o produto que nos chega é o resultado de uma fórmula, não me diga que me vai dar a fórmula?
Henrique deu uma gargalhada trocista .
- É o segredo do negócio, e quem trabalha neste ramo está proibido de falar. Sabe que tive de decretar castigos pesados para quem faz contrabando do líquen? Felizmente existe na Madeira  em grandes quantidades, mas quando conquistar as Canárias, vou começar a exportar sangue-de-dragão, a resina da planta vale ouro…
(…)
(Stilwell, Isabel (2013), Ínclita Geração. Isabel de Borgonha a filha de D. Filipa de Lencastre que levou Portugal ao mundo. Lisboa: A Esfera dos Livros, pág. 46).

Retrato da Infanta D. Isabel de Portugal. Reprodução aguarelada do retrato da Infanta D. Isabel, filha de D. João I, pintado em Avis, em Janeiro de 1429, por Jan van Eyck, moço de câmara de Filipe o Bom, duque de Borgonha e de Barbante, conde da Flandres. (450 x 410mm) Século XVII? -Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Filipe III de Borgonha, dito, Filipe, o Bom (1396-1467), com cortes em Dijon e Ghent, nomeou  Jan van Eyck pintor da corte da Flandres, o que contribuiu seguramente para a notoriedade do artista. 
A cultura aristocrática da corte movia-se dentro dos moldes da maneira de viver da cavalaria.  A arte, onde se incluía a pintura de Van Eyck, desenvolvia-se num meio de vida palaciana e tinha como destino a corte e a classe média superior que se relacionava nesse meio.

As pinturas de então, atingiam valores elevadíssimos e, valendo como moeda, eram transacionadas e oferecidas.

Em 1428, Filipe enviou uma delegação de embaixadores borgonheses a Portugal, para negociar o casamento com Isabel de Portugal (1397-1471), que incluiu Van Eyck, o qual, realizou dois retratos da princesa, que foram entregues em Borgonha ao duque Filipe. 

A realização dos dois retratos é historiada por Isabel Stilwell:
(…)
Isabel estava fascinada a olhar para o pintor com um avental de burel pendurado ao pescoço, a cara redonda e bem-disposta, agora absolutamente concentrada no que estava a fazer.
- Pintar dois quadros ao mesmo tempo, senhor Van Eyck? – perguntou divertida.
- Duvida de que sou capaz? – retorquiu o pintor, chamando com a mão o rapazinho muito loiro que misturava tintas numa tigela e não devia ter mais de dez anos. (…)
(Stilwell, Isabel (2013), Ínclita Geração. Isabel de Borgonha a filha de D. Filipa de Lencastre que levou Portugal ao mundo. Lisboa: A Esfera dos Livros, pág. 34).
Retrato de Isabel de Portugal, Duquesa consorte de Filipe, o Bom, de Borgonha. O retrato é uma cópia (ca. 1500) do retrato original (ca. 1430). O original poderá ter sido realizado por Jan van Eyck ou Rogier van der Weyden - Musée des Beaux Arts de Dijon - Wikipédia
O contrato de casamento foi elaborado, e Isabel, ainda em Portugal, casou por procuração, em Julho de 1429, na cidade de Lisboa. O casamento religioso entre Isabel e o duque de Borgonha, foi celebrado no dia 7 de Janeiro de 1430, em Burges .

Na Europa da época, a pintura de Van Eyck evidenciou-se pela alta qualidade, cuidada execução e uso de cores delicadas, sendo certamente o maior entre os pintores do século XV.


Políptico de Ghent ou Adoração do Cordeiro Místico (retábulo aberto); óleo sobre madeira; 1425-1432; Jan van Eyck. - Catedral de Saint-Bavo de Ghent - Wikipédia


O retábulo intitulado Ghent Políptico ou Adoração do Cordeiro Místico, feito por Jan van Eyck o pelo irmão Hubert (1366-1426) - falecido antes da obra concluída -, é um políptico de doze tabelas a óleo sobre madeira, realizado para a igreja de Saint-Jean, agora Catedral de Saint-Bavo de Ghent. É considerado um dos maiores retábulos do Norte da Europa do século XV, por medir 350 x 461 cm depois de aberto. Normalmente fechado, o políptico é aberto durante as festividades, mostrando as cores vibrantes do interior.

Adoração do Cordeiro Místico (detalhe do painel); óleo sobre madeira; 1425-29; Jan van Eyck. - Catedral de Saint-Bavo de Ghent - Web Gallery of Art

A fase de execução do Ghent Políptico ou Adoração do Cordeiro Místico, é tema para Isabel Stilwell:

(...)
Viajavam habitualmente juntos, mas desta vez Isabel conseguira convencer o marido de que precisava com urgência de visitar Van Eyck para que Fernando visse a pintura do Cordeiro Místico, antes de regressar a Lisboa com grande parte da comitiva portuguesa que estava decidida a voltar a Portugal.
Coisa rara, o sol conseguira despontar por entre as nuvens e, da janela do quarto no torreão do grande castelo da cidade, via a cúpula negra da Catedral de São João, lá em baixo à esquerda do rio que atravessava Ghent, tão cheia de vida. 
(...)
Isabel e Fernando olharam o painel maravilhados. 
(...)
Van Eyck, escutando vozes. olhou para baixo do andaime e saudou-os:
- Senhora Dona Isabel, que felicidade, sempre vieram.
E ágil, apesar dos seus mais de 40 anos, desceu dos andaimes e, feltindo um joelho, beijou a mão da duquesa.
- Venha, venha, quero mostrar-lhe o que acabei de pintar hoje mesmo.
 (...)
- Agora sente-se aqui neste banco, e diga-me: sabe quem é Sibila de Cumes? 
(...)
- Sibila de Cumes era como eu, uma estranha num país que não é seu, que surgiu ao rei em Roma  e lhe propôs vender nove livros de profecias... O rei não concordou com o preço e não os comprou. E então a profetisa ou deusa, conforme as histórias, disse-lhe que os ia destruir.
(...)
- Senhora Dona Isabel, apresento-lhe a minha Sibila.
Isabel olhou para um painel individual, encostado ao paramentador da sacristia, e viu-se a si mesma! A mesma touca com que posara para ele em Avis, a mesma roupa...
(...)
Fernando com o seu sentido prático, comentou: 
- Isabel, o pai vai ficar muito orgulhoso de saber que és Sibila de Cumes.
(...)
Van Eyck anuiu:
- Que esta notícia não saia daqui. Quando durante a santa missa levantarmos a cabeça para observar o meu maravilhoso quadro, só nós saberemos que vemos Isabel de Portugal.
(Stilwell, Isabel (2013), Ínclita Geração. Isabel de Borgonha a filha de D. Filipa de Lencastre que levou Portugal ao mundo. Lisboa: A Esfera dos Livros, págs. 124-127).
Políptico de Ghent ou Adoração do Cordeiro Místico (retábulo fechado); óleo sobre madeira; 1432; Jan van Eyck. - Catedral de Saint-Bavo de Ghent - Wikipédia



Políptico de Ghent ou Adoração do Cordeiro Místico (painéis com representação das profetisas da mitologia grega; à esquerda, Sibila Eritréia em atitude de oração; à direita, Sibila de Cumes coloca a mão sobre o ventre num gesto que sugere a gravidez de Maria; o rosto e o vestuário da Sibila de Cumes é semelhante ao de Isabel de Portugal); óleo sobre madeira; 1432; Jan van Eyck. - Catedral de Saint-Bavo de Ghent - Web Gallery of Art


O retábulo recuperado das minas de sal de Altausse no final da Segunda Guerra Mundial - Wikipédia

O retábulo ou políptico de Ghent foi bastante cobiçado, sendo vítima de vários ataques e roubos. Em consequência, os diversos painéis foram separados continuamente, permanecendo assim, por longos períodos de tempo. No ano de 1566, foi removido e escondido, evitando a destruição pelos iconoclastas da época. Na Segunda Guerra Mundial, o exército nazi desviou-o com outras sete mil obras de arte, sendo resgatadas pelo MFAA (Monuments, Fine Arts, and Archives program o Monuments Men) no fim da guerra. Em 1934, foi roubado o painel The Just Judges (canto inferior esquerdo do políptico). Actualmente, o painel visível é uma cópia feita pelo pintor belga Jen Vanderveken, no ano de 1945. Desde 2010, o retábulo está a ser sujeito a um minucioso trabalho de restauro, com o apoio da Fundação Getty, na Califórnia, estando prevista a conclusão em 2017.



Fontes:

http://it.wikipedia.org/wiki/Filippo_III_di_Borgogna
http://it.wikipedia.org/wiki/Isabella_d%27Aviz_(1397-1471)
http://it.wikipedia.org/wiki/Jan_van_Eyck
http://es.wikipedia.org/wiki/Pol%C3%ADptico_de_Gante
http://www.wga.hu/frames-e.html?/html/e/eyck_van/jan/index.html
http://ciarte.no.sapo.pt/textos/html/200701.html       (António João Cruz)   

Stilwell, Isabel (2013), Ínclita Geração. Isabel de Borgonha a filha de D. Filipa de Lencastre que levou Portugal ao mundo. Lisboa: A Esfera dos Livros.
Correia, João, A arte uma história visível. Lisboa: Edições Rumo.



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